"O conhecimento derivado de nossas Coleções Científicas é vital para a conservação, e também para a preservação dos nossos ecossistemas ameaçados". Com essas palavras, E. O. Wilson, um dos maiores naturalistas do século XX e da atualidade, juntou-se a um grupo de mais de 100 pesquisadores de 66 instituições científicas em defesa da necessidade da coleta de organismos para fins científicos, em um artigo publicado no dia 23 de maio na revista Science (Rocha et al., 2014 - Specimen collection: An essential tool), uma das principais revistas científicas do mundo.

Esse artigo, que foi coordenado pelo Dr. Luiz A. Rocha, brasileiro de nascimento e Curador da Coleção de Peixes da "California Academy of Sciences, San Francisco", surgiu como uma resposta a outro artigo publicado por quatro pesquisadores (Minteer et al., 2014 - Avoiding (Re)extinction) cerca de um mês antes na mesma revista. Minteer e coautores questionaram a necessidade da coleta de organismos para o reconhecimento da biodiversidade nos tempos modernos, argumentando que técnicas alternativas e possivelmente não letais (como fotografias, gravações em áudio e amostragem de tecidos para análises de DNA) são mais que suficientes para acessar a diversidade. "É natural e até mesmo saudável que a sociedade questione a necessidade de coletar organismos para fins científicos", diz o Prof. Dr. Fabio Di Dario, PinguinusSiteNupempesquisador e Curador da Coleção de Peixes do Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (NUPEM), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e um dos autores da resposta liderada pelo Dr. Rocha. "O problema principal é que Minteer e seus coautores falharam em reconhecer que coleções biológicas não servem apenas como "repositórios de espécies", mas são a base para uma série de disciplinas voltadas à compreensão da biodiversidade no espaço e no tempo, além de serem essenciais para a conservação".

Na verdade, o artigo de Minteer et al. foi além em suas críticas às coletas de exemplares para fins científicos, disseminando a concepção amplamente reconhecida como infundada de que cientistas teriam sido responsáveis por acelerar o processo de extinção de espécies raras no passado e no presente. "A morte dos dois últimos exemplares da Alca Gigante (Pinguinus impennis), uma fantástica ave marinha não voadora do Atlântico Norte, representa um dos episódios mais tristes de extinção induzida por humanos. Ao usar esse exemplo, Minteer e coautores igualaram o assassinato dessas aves com o que é feito na prática atual científica. Isso é lastimável", completa Fabio Di Dario. Os momentos derradeiros dessa espécie foram acompanhados por Alfred Newton, que na segunda metade do século XIX relatou a captura das duas últimas Alcas Gigantes, em junho de 1844, na Islândia:

 "Enquanto os homens trepavam no costão rochoso, eles viram dois exemplares da Alca Gigante (...) e iniciaram a caçada. As Alcas não mostraram a menor inclinação para repelir os invasores, mas imediatamente correram para baixo da porção mais alta do penhasco, com suas cabeças eretas e suas asas ligeiramente abertas. Elas não proferiram nenhum grito de alarme, e se moveram, com suas passadas curtas, de modo tão rápido quanto uma pessoa pode caminhar. Jon, com seus braços abertos, dirigiu uma delas a um canto, onde rapidamente a imobilizou. Sigurdr e Ketil perseguiram a segunda, e o primeiro a pegou perto da margem do rochedo (...). Tudo isso aconteceu em menos tempo do que leva-se para contar o evento."

Alguns órgãos internos desses exemplares eventualmente foram parar no Museu de Zoologia da Universidade de Copenhague, Dinamarca, onde estão preservados até hoje para fins científicos. Entretanto, sabe-se há um certo tempo que a caça indiscriminada ao longo de milhares de anos, em uma população possivelmente diminuída por um evento natural de mudança climática, foi a provável causa da extinção das Alcas Gigantes. Nenhum pesquisador hoje em dia, em sã consciência, coletaria esses dois últimos espécimes. Além disso, infelizmente, as duas últimas Alcas muito provavelmente seriam mortas por Jon, Sigurdr e Ketil ou outros marinheiros que aportassem naquelas ilhas, tendo em vista a mentalidade da época. Mas o mais importante no contexto da discussão iniciada por Minteer et al. é que apenas 102 exemplares de Alcas Gigantes estão depositados em Coleções Científicas do mundo, sendo que a maioria desses exemplares é formada por esqueletos que foram adquiridos depois que essas aves foram extintas, como ressaltado por Rocha et al. Quando sabe-se que um número quase infinito dessas aves foram mortas ao longo de milhares de anos como alimento (principalmente após as Grandes Navegações) e como fonte de óleo e penas, percebe-se o quão infundado é o exemplo de Minteer et al.

Rocha et al. também exploraram exemplos ilustrativos que mostram que a informação associada às Coleções Biológicas é extremamente importante para a compreensão de uma série de questões relevantes em termos conservacionistas, e não "apenas" para o reconhecimento da diversidade. Exemplos citados vão desde a compreensão do possível local de origem e padrão de dispersão de uma doença fúngica que pode levar diversas espécies de anfíbios à extinção, na tentativa de evitar que ela se prolifere ainda mais, à percepção de que mudanças climáticas induzidas por atividades humanas podem estar levando a uma redução no tamanho do corpo de diversos organismos terrestres e aquáticos. Estas e outras descobertas importantes só foram possíveis a partir da análise de exemplares inteiros, e não apenas de tecidos ou fotografias, que foram coletados quando tais questões não eram sequer imaginadas. Esse é um dos outros motivos que torna as Coleções Científicas tão importantes: elas representam bibliotecas da diversidade biológica, que ao longo do tempo são exploradas pela humanidade de maneiras que ninguém é capaz de prever. Cada organismo íntegro depositado em uma Coleção Biológica representa uma fonte inesgotável de dados para nossa geração e para gerações futuras. Se Coleções Biológicas são bibliotecas da diversidade, espécimes inteiros representam livros raros, plenos em conteúdo informativo. Nessa analogia, amostras de tecidos ou fotografias desvinculadas de espécimes depositados em Coleções (espécimes-testemunho) não passam de um mero resumo imperfeito da obra, de utilidade limitada no presente e, talvez, irrelevante no futuro.

Mesmo quando se considera o aspecto mais diretamente associado às Coleções Biológicas, que é documentar a diversidade de uma determinada região ou grupo taxonômico, percebe-se que utilizar apenas as técnicas alternativas propostas por Minteer et al. simplesmente não resolveria o problema, na grande maioria dos casos. Em primeiro lugar, a maior parte da diversidade ainda é desconhecida justamente porque ela "vive escondida" em habitats altamente específicos, que geralmente não podem ser acessados de maneira não-letal. O reconhecimento da fauna de oceano profundo, por exemplo, é possível somente através de coletas direcionadas às espécies que vivem além dos 200 metros de profundidade. Essa questão é particularmente relevante no Norte Fluminense, devido à exploração petrolífera e seus possíveis impactos ambientais na Bacia de Campos. Imagens feitas com uso de câmeras acopladas à veículos submersíveis operados remotamente (ROVs) constituem ferramentas interessantes, mas na grande maioria dos casos, não são suficientes para identificar espécies com a precisão necessária para a compreensão da diversidade desses ambientes. Segundo o Prof. Dr. Michael Maia Mincarone, especialista em peixes marinhos de águas profundas e também Curador da Coleção de Peixes do NUPEM/UFRJ, "as técnicas alternativas propostas por Minteer et al. são na verdade técnicas complementares. O uso de fotografias, gravações em áudio e amostragem de tecidos para análises de DNA, já é amplamente difundido entre aqueles que buscam evidências complementares na identificação e documentação da biodiversidade, mas jamais substituirão o valor implícito de um exemplar completo depositado em uma Coleção".

O Prof. Dr. Pablo Rodrigues Gonçalves, especialista em mamíferos e Curador da Coleção desses animais no NUPEM/UFRJ, completa: "até em grupos de vertebrados mais bem estudados, como mamíferos, Coleções e estudos baseados em espécimes-testemunho continuam essenciais para a descrição de novas espécies e documentação da distribuição geográfica de espécies raras ou ameaçadas". Estudos recentes, por exemplo, mostram que pelo menos uma centena de novas espécies de mamíferos foi descrita para o território brasileiro nos últimos 20 anos, o que representa 10% do número de total de espécies de mamíferos conhecidos do país. A maioria dessas espécies é representada por pequenos roedores e morcegos que dificilmente seriam identificados sem o estudo meticuloso de espécimes em Coleções Biológicas.

É justamente o reconhecimento dessa diversidade, endêmica em muitos casos, que tem levado ao reconhecimento de "hotspots" de biodiversidade e à eventual proposição de Unidades de Conservação, como é o caso do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, no Norte Fluminense. O microcrustáceo Diaptomus azureus é conhecido de apenas algumas lagoas de águas escuras da região, ricas em ácidos húmicos. A descoberta dessa espécie endêmica deu forças ao grupo de pesquisadores, ambientalistas e gestores públicos que reivindicaram a criação do PARNA Jurubatiba no final de década de 1990. "Graças à criação do PARNA, outras espécies desconhecidas, como era até recentemente esse copépode, ainda poderão ser descobertas na região", de acordo com a Profa. Dra. Ana Cristina Petry, que desenvolve pesquisas ecológicas nas lagoas e áreas alagáveis do Norte Fluminense. Ainda segundo a Profa. Petry, "a região onde localiza-se o PARNA muito provavelmente seria hoje em dia um canteiro de obras ou loteamento urbanizado de alagados drenados com vista para o mar se a área não fosse protegida, dada a velocidade do processo de urbanização registrado no Norte Fluminense".

Um outro aspecto que não foi considerado por Minteer et al. refere-se à simples impossibilidade de se aplicar "técnicas alternativas" para o reconhecimento da diversidade em diversos países em desenvolvimento, que por questões históricas e econômicas ainda carecem de pessoal técnico especializado e, principalmente, de recursos para análises laboratoriais monetariamente dispendiosas, como as necessárias em estudos de análises moleculares. Essa situação é ainda mais relevante quando consideramos três fatores: a) diversos países em desenvolvimento são considerados biologicamente megadiversos, embora b) parte significativa de sua biodiversidade ainda seja desconhecida, e c), são justamente os países em desenvolvimento que devem, idealmente, equilibrar o desenvolvimento econômico e social com a preservação de seus recursos naturais. Esse ponto foi ressaltado por Rocha et al., e certamente reflete os anseios de diversos pesquisadores da América Latina, África e Ásia que participaram do artigo.

Embora essa talvez não tenha sido a ideia de Minteer et al., outra concepção errônea que pode advir de uma análise mais superficial da situação é que sistematas (que são os pesquisadores primordialmente vinculado às Coleções Biológicas) sentem um certo "prazer mesquinho" ao coletar espécimes e preservá-los em "suas" Coleções. As principais Coleções Biológicas são patrimônios públicos. No Brasil, a biodiversidade é um patrimônio da nação, embora na prática esse patrimônio extrapole fronteiras. Com raras exceções (afinal de contas, somos todos humanos), a relação entre os Curadores de Coleções Biológicas e a sociedade é extremamente positiva e aberta. Praticamente todo Curador se recorda da visita ou telefonema de um morador local interessado em saber o nome de um animal ou planta, que encontrou e lhe era, até então, desconhecido.

Filhote de tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum), que é uma espécie ameaçada de extinção no Brasil.

Por sinal, algumas grandes descobertas da ciência foram motivadas por situações como essas. Existe também uma relação muito salutar, de troca enriquecedora, entre Coleções Biológicas de todas as partes do mundo. Um exemplo interessante refere-se à história de um filhote de tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum), que é uma espécie ameaçada de extinção no Brasil. Originalmente, tubarões-lixa eram relativamente comuns em ambientes marinhos ao longo de grande parte da costa brasileira, incluindo ilhas oceânicas. Hoje em dia, são raríssimos no Sudeste do Brasil, que representa o limite austral de distribuição da espécie em nossa costa. Um filhote de tubarão-lixa de aproximadamente 25 centímetros de comprimento foi coletado com outros cinco indivíduos ao largo da costa de Vitória (ES) em 14 de julho de 1944, quando a espécie era bem mais comum na região. O lote formado por esses exemplares foi originalmente incorporado à Coleção de Peixes da "Stanford University", na Califórnia, sendo posteriormente transferido para a "California Academy of Sciences". Há três anos, ou seja, quase 70 anos depois de sua coleta, esse exemplar foi doado para a Coleção de Peixes do NUPEM/UFRJ, em um processo que foi facilitado pelo Dr. Rocha. Com a estruturação das Coleções Biológicas do Brasil, o repatriamento de espécimes coletados há muitas décadas em território nacional tem se tornado cada vez mais comum, o que representa um resgate do patrimônio biológico e histórico da nação. Esse pequeno tubarão-lixa é também valioso por diversos motivos. Ele nos mostra claramente que esses animais, hoje em dia raríssimos, se reproduziam na região, e que se eles não estão mais aqui, alguma coisa grave aconteceu ao ambiente. Mas o mais importante talvez seja o valor intrínseco e potencialmente transformador desse indivíduo: ele é, por si só, uma maravilha da natureza, que nos conecta a um tempo onde outros organismos incríveis eram comuns e conhecidos por muitas pessoas, não apenas pelos especialistas. E quando se tem algo tão valioso em mãos, o sentimento de que nós, humanos, estamos alterando de maneira irreversível o meio ambiente, se torna palpável, quase visceral.

Existem muitas espécies raras e algumas poucas espécies bastante abundantes em praticamente todos os ecossistemas da Terra. Ao contrário do que se imagina, mesmo as espécies comuns, que hoje em dia dominam as comunidades biológicas, não estão isentas de se tornarem ameaçadas de extinção nos próximos séculos. As principais causas da extinção são reconhecidamente a sobrexplotação, a perda de hábitats, a introdução de espécies exóticas, e as extinções em cascata causadas pela remoção de predadores de topo da cadeia alimentar. Essas causas não podem ser atribuídas, em nenhuma instância, às atividades científicas. Em seu livro "Diversidade da Vida", E. O. Wilson ressaltou que "a humanidade coevoluiu com o restante da vida apenas neste planeta; outros mundos não estão em nossos genes. Como os cientistas ainda têm de colocar nomes na maioria dos organismos, e porque eles possuem apenas uma vaga ideia de como os ecossistemas funcionam, é arriscado supor que a biodiversidade pode ser diminuída por tempo indeterminado, sem ameaçar a própria humanidade". Esse é um dos motivos pelos quais as Coleções Biológicas, todo seu conteúdo informativo, e o legado das pesquisas a elas associadas, devem ser valorizados.

O artigo de Rocha et al. (2014) pode ser encontrado em http://www.sciencemag.org/content/344/6186/814.full (permissão de "download" de artigos da Science necessária)

A citação completa de Rocha et al. (2014) é:
Rocha, L. A., A. Aleixo, G. Allen, F. Almeda, C. C. Baldwin, M. V. L. Barclay, J. M. Bates, A. M. Bauer, F. Benzoni, C. M. Berns, M. L. Berumen, D. C. Blackburn, S. Blum, F. Bolaños, R. C. K. Bowie, R. Britz, R. M. Brown, C. D. Cadena, K. Carpenter, L. M. Ceríaco, P. Chakrabarty, G. Chaves, J. H. Choat, K. D. Clements, B. B. Collette, A. Collins, J. Coyne, J. Cracraft, T. Daniel, M. R. de Carvalho, K. de Queiroz, F. Di Dario, R. Drewes, J. P. Dumbacher, A. Engilis Jr., M. V. Erdmann, W. Eschmeyer, C. R. Feldman, B. L. Fisher, J. Fjeldså, P. W. Fritsch, J. Fuchs, A. Getahun, A. Gill, M. Gomon, T. Gosliner, G. R. Graves, C. E. Griswold, R. Guralnick, K. Hartel, K. M. Helgen, H. Ho, D. T. Iskandar, T. Iwamoto, Z. Jaafar, H. F. James, D. Johnson, D. Kavanaugh, N. Knowlton, E. Lacey, H. K. Larson, P. Last, J. M. Leis, H. Lessios, J. Liebherr, M. Lowman, D. L. Mahler, V. Mamonekene, K. Matsuura, G. C. Mayer, H. Mays Jr., J. McCosker, R. W. McDiarmid, J. McGuire, M. J. Miller, R. Mooi, R. D. Mooi, C. Moritz, P. Myers, M. W. Nachman, R. A. Nussbaum, D. Ó Foighil, L. R. Parenti, J. F. Parham, E. Paul, G. Paulay, J. Pérez-Emán, A. Pérez-Matus,  S. Poe, J. Pogonoski, D. L. Rabosky, J. E. Randall, J. D. Reimer, D. R. Robertson, M.-O. Rödel, M. T. Rodrigues, P. Roopnarine, L. Rüber, M. J. Ryan, F. Sheldon, G. Shinohara, A. Short, W. B. Simison, W. F. Smith-Vaniz, V. G. Springer, M. Stiassny, J. G. Tello, C. W. Thompson, T. Trnski, P. Tucker, T. Valqui, M. Vecchione, E. Verheyen, P. C. Wainwright, T. A. Wheeler, W. T. White, K. Will, J. T. Williams, E. O. Wilson, K. Winker, R. Winterbottom & C. C. Witt. 2014. Specimen collection: An essential tool. Science, 344: 814-815.

A Coleção de Peixes do NUPEM/UFRJ (NPM) está disponível para consultas online no speciesLink (http://splink.cria.org.br)

(texto: F. Di Dario, P. R. Gonçalves, M. M. Mincarone & A. C. Petry - contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

 

 

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