Na eminência do encerramento do ano, vimos o fenômeno de janeiro de 2008 se repetir: o rompimento da barra arenosa das lagoas costeiras mais importantes da região, as lagoas de Carapebus e do Paulista

 (Figura 1), que juntas, concentram um importante manancial de água doce e populações diversas de animais e plantas aquáticas. Pode parecer estranho considerar uma perturbação o rompimento da barra arenosa de uma lagoa costeira. À primeira vista, pelo menos, não nos parece algo absurdo que um organismo que viva num ambiente desses tenha dificuldades em passar da água doce ou salobra para a água do mar. Afinal, água é água, certo? Infelizmente, não.

 

Figura 1

Figura 1. Localização das principais lagoas costeiras de água doce compreendidas entre Macaé e Quissamã e que sofrem aberturas de barra. A linha vermelha indica o Canal Campos-Macaé, que conecta a Lagoa Feia à Lagoa do Paulista.

 

Organismos que evoluíram na água doce e dependem exclusivamente dela para viver, como dezenas de espécies de peixes, plantas aquáticas e outras invisíveis a olho nu, como microalgas e microcrustáceos não possuem adaptações fisiológicas para lidar com as mudanças na salinidade da água. Essas sucumbem quando ejetadas para a água marinha. A abertura da barra de uma lagoa costeira cria uma força de vazão tremenda para o mar, carreando além da água doce, todos aqueles organismos sem força suficiente para nadar contra a correnteza (Figura 2). Até mesmo animais de maior porte como capivaras, jacarés do papo-amarelo e serpentes são arrastados para o mar.

 

Figura 2

Figura 2. Rompimento da barra arenosa da Lagoa de Carapebus, em fevereiro de 2008.

 

Para as 18 lagoas costeiras situadas dentro dos limites do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (Restinga de Jurubatiba), a autorização da abertura da barra arenosa é realizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), após deliberação do Conselho Consultivo da Unidade, no qual representantes da sociedade civil, prefeituras e institutos de pesquisa tem assento e voto. Das aberturas de barra ocorridas em 2019, apenas a da Lagoa de Carapebus no último dia 13 (sexta-feira) seguiu o Protocolo de Procedimentos de Abertura de Barra de Lagoas do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba. Essa foi a segunda vez em seis anos que o protocolo foi acionado e aplicado em Carapebus (anteriormente em 23 de dezembro de 2013). O estado crítico das edificações e acessibilidade ao balneário homônimo foram as principais motivações para a autorização da abertura da barra da Lagoa de Carapebus, apesar dos efeitos negativos para conservação da biodiversidade aquática. Entretanto, a população do Norte Fluminense recebeu atônita a notícia e imagens do manejo irregular realizado à revelia na Lagoa do Paulista logo em seguida da abertura da barra da Lagoa de Carapebus. Para os pesquisadores do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPEM/UFRJ) que há 20 anos estudam o rico patrimônio natural representado pelas lagoas costeiras da Restinga de Jurubatiba, a abertura da barra da Lagoa do Paulista representa um ato que além de ilegal, foi irresponsável, pois coloca em risco a segurança hídrica nos municípios de Carapebus e Quissamã e ameaça a conservação de espécies nativas das lagoas costeiras da Restinga de Jurubatiba.

Menos de 2 km separam as lagoas de Carapebus e do Paulista que, nestes dias de barra aberta, podem ser comparadas a uma pia de cuba dupla e sem tampa em seus ralos. Mais preocupante, ainda, é que a torneira também está aberta e muito em breve a caixa d’água esvazia, sendo que o prejuízo será compartilhado por todos. Nesse período, que pode se estender pelos próximos 30 dias, o fluxo intenso de água doce perdida para o mar promoverá um aumento da vazão do Canal Campos-Macaé, que conecta o Rio Paraíba do Sul ao Rio Macaé, e que tem na Lagoa do Paulista sua porta de acesso às demais lagoas da Restinga de Jurubatiba. Perdendo água doce para o mar pelas barras de Carapebus e do Paulista, o Canal Campos-Macaé:

 

•    Drenará água doce das lagoas Feia e da Ribeira, reduzindo o nível d’água dessas lagoas que apesar de estarem fora da Unidade de Conservação, funcionam como caixas d’água de uma casa, pois são os mais importantes mananciais de abastecimento da população de Quissamã. Além disso, a diminuição do volume de água das lagoas do Paulista e de Carapebus levará a uma redução na altura do lençol freático em áreas adjacentes, trazendo consequências negativas para os assentamentos de agricultores de Carapebus, que dele dependem para irrigação de seus cultivos.

•    Funcionará como uma via unidirecional de acesso dos peixes da Lagoa Feia para as lagoas da Restinga de Jurubatiba. A Lagoa Feia recebe água de rios importantes, como o Paraíba do Sul, Ururaí e Macabu e detém três vezes mais espécies não nativas que as lagoas da Restinga de Jurubatiba (Figura 3). Isolada do mar pela barra arenosa e com nível de água equilibrado com o Canal Campos-Macaé, a Lagoa do Paulista blindava as demais lagoas da Restinga de Jurubatiba da invasão por espécies não nativas.

 

Figura 3

Figura 3. O cará Cichlasoma dimerus, uma espécie nativa das bacias dos Rios Paraná e Paraguai e potencial invasora das lagoas da Restinga de Jurubatiba, pois tem população estabelecida na Lagoa Feia.

 

O risco de que espécies não nativas de peixes com populações estabelecidas na Lagoa Feia encontrem na atual vazão exacerbada do Canal Campos-Macaé em direção à Lagoa do Paulista a via de acesso para invadirem as lagoas da Restinga de Jurubatiba é, agora, uma questão de tempo, pois a oportunidade já foi dada, na última sexta-feira 13.

Assinam a Matéria:

Ana Cristina Petry (Docente do NUPEM/UFRJ)

Mônica Pacheco de Araujo (Doutoranda do PPG-CiAC)

Rodrigo Lemes Martins (Docente do NUPEM/UFRJ)

Mauricio Mussi Molisani (Docente do NUPEM/UFRJ)

 

UFRJ PPGCIAC - Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Conservação
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